Com as mãos no teclado e o pé e o ouvido no mundo, Gracielle Fonseca e Priscila Brito compartilham suas vivências em festivais. Ao misturar paixão com trabalho, as duas jornalistas criaram o Festivalando, um guia online com foco em festivais de música e turismo musical.

Fã de metal, Gra é pesquisadora da área de análise do discurso crítica, gênero e música. Da experiência, surge também sua veia documentarista. Ela é um dos nomes por trás do “Ruído das Minas: a origem do heavy metal em Belo Horizonte” e autora do “Mulheres no Metal (Women in Metal)“, o primeiro documentário do mundo a abordar questões de gênero, machismo no meio musical e, claro, muito metal.

Por sua vez, a Pri é Profissional Fellow do International Center For Journalistas e do Departamento de Estado dos EUA pelo programa de empreendedorismo e inovação na América Latina. Ela também acumula publicações em veículos de mídia como o jornal O Tempo, Brasil Post e Mixmag.

Juntas, elas toparam conversar com o Quanto Custa Viajar sobre turismo musical e suas experiências com o pé na lama nesse mundão.

Essa é a terceira entrevista da série “O mundo é delas“, em que nos propomos a compartilhar histórias de mulheres incríveis que estão redefinindo o conceito de viagens de um jeito muito especial.

Aproveita para conferir também o bate-papo que tivemos sobre minimalismo e viagens com a Caroline Abreu e a nossa conversa sobre turismo sustentável com a Ana Duék.

Turismo musical, com Priscila e Gracielle

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Equipe Quanto Custa Viajar – Quando vocês começaram a viajar para festivais?

Gracielle Fonseca – Eu comecei a viajar para festivais mesmo em 2009, quando fui ao Brutal Assault. Antes disso, já havia viajado para outros estados por conta de shows de bandas que gosto. Mas a primeira viagem para festival foi essa em 2009, na República Tcheca. Conheci o BA e me apaixonei, tanto que voltei para o festival depois em 2014, quando já tínhamos o site.

Essa primeira experiência de viagem foi uma das mais insanas. Primeiro, porque não havia nada parecido com o Festivalando para me ajudar a planejar (rs), e também porque várias coisas inusitadas aconteceram. Tipo, foi meio tenso ter que lidar com a incerteza se aquele festival ia mesmo acontecer, pois havia uma certa desconfiança de uma empresa promotora de eventos cujo nome é “obscure productions” hahah. Segundo, porque era um país onde o inglês não é língua oficial, moeda bem diferente também, essas coisas todas. Mas foi também nesse festival que tive a experiência de estar muito perto de bandas que amava, pois fiquei hospedada no mesmo hotel em que a maioria dos artistas estava e que era o hotel oficial do festival. Daí, um monte de coisa legal rolou.

Por exemplo, tomei café da manhã na mesa da Opeth, convidada por eles mesmos; fiquei na fila do check-in com Turisas; peguei elevador com o povo da Rotting Christ; fiquei na fila do pão com Orphaned Land, presenciei o Abbath, na época ainda com o Immortal, dar um piti sobre os ovos mexidos no café da manhã e por aí vai…

Gracielle no Wacken Open Air, na cidade de Wacken, Alemanha. Foto: Divulgação

Priscila Brito – Eu comecei a viajar pra festivais indo pra São Paulo pro Planeta Terra e, uns anos depois, pro Lollapalooza. Nesse mesmo período, eu também viajava pra shows solo pelo Brasil. Na época, eu comecei a fazer minhas primeiras viagens internacionais pra Europa e tinha sempre a ideia de ir a um festival europeu, mas nunca rolava. Como não existia nada parecido com o Festivalando, eu fazia o inverso do que se tem que fazer quando você quer ir pra um festival no exterior. Eu comprava as passagens, reservava o hotel e só depois ia olhar se tinha algum festival acontecendo no lugar e nas datas em que eu ia estar. Obviamente, nunca dava certo. O festival que me interessava já tinha acontecido ou então ia rolar num país longe do meu destino. Até que chegou o ano que veio a oportunidade de fazer uma viagem toda pensada em cima dos festivais, que foi a viagem que deu origem ao site, e aí sim tudo começou a fluir.

QCV – E, então, o Festivalando surgiu como nessa história?

Gracielle – Ele surgiu em 2014, quando eu, uma amiga chamada Vanessa Costa e a Pri estávamos tomando sorvete em um shopping de BH. Estávamos comentando o quanto era legal viajar para festival, o quanto gostaríamos de fazer isso para a vida e, se pudéssemos ganhar grana pra fazer isso, melhor ainda, pois também estávamos muito insatisfeitas com as nossas carreiras profissionais. Foi aí que, quando a Pri comentou já ter um certo conhecimento com a linguagem e estrutura de blogs, é que a gente pensou que poderia ser uma boa ideia arriscar.

Se desse errado, pelo menos teríamos muita história e experiência legal pra levar pra vida. Então, duas coisas corroboraram pra tudo acontecer: eu tinha uma viagem em vista pra ficar morando 1 ano na Dinamarca. Além disso, também tínhamos uma amiga, a Paula Costa, que era o terceiro elemento do site no início, que tava fazendo intercâmbio em Budapeste. Daí a Pri teve a ideia de convidar a Paula e começamos a estruturar juntas o que seria o tal do Festivalando. Eu já tinha contatos de designers, conversamos com alguns, decidimos a linha editorial que seguiríamos, estruturamos seções, pensamos em coisas que ninguém nunca antes tinha pensado quando o assunto era festival e viagem na web e começamos a nos movimentar pro site virar realidade antes mesmo da nossa primeira viagem juntas para festival.

Pri (esquerda) e Gra (direita) no festival de heavy metal Brutal Assault, em Hradréc-Králové, na República Tcheca. Foto: Divulgação

Priscila – Nessa viagem que a Gra comentou, nós ficamos dois meses rodando pela Europa em um mochilão de festivais, em alguns momentos juntas e em outros separadas. Começamos pelo Roskilde (um dos maiores e mais antigos da Europa), na Dinamarca, e, de lá, emendamos o Popegoja (um festival indie de talentos locais), na Suécia. De lá, a Gra foi pro Wacken (maior festival de heavy metal do mundo), na Alemanha, e eu fui pro Montreux Jazz Festival (outro dos mais antigos do continente), na Suíça. Eu ainda fui pro Resist to Exist (maior festival punk DIY da Europa), em Berlim. Depois nos encontramos para o Brutal Assault (festival de heavy metal que acontece num forte histórico), na República Tcheca, e para o Sziget (um dos mais globalizados da Europa em termos de público), na Hungria.

O que é legal desse roteiro que montamos é que ele já mostra muito a percepção do Festivalando em relação a viajar pra festivais: nós vamos para os maiores e mais famosos, sim, mas também exploramos os pequenos ou com menos apelo, seja porque têm uma proposta interessante ou porque acontecem num lugar legal, trazem uma boa oportunidade de turismo local.

QCV – Existe muita diferença em planejar uma viagem com foco em festivais de música e organizar um roteiro tradicional?

Gra – Sim, pois isso vira o centro do planejamento. Você precisa organizar sua vida em torno e em função dos dias em que irá ao festival. Caso contrário, sua viagem se torna um caos.

Pri – Além da diferença no planejamento logístico, existe diferença também no planejamento financeiro. Uma viagem pra festival acaba ficando mais cara por causa do ingresso e porque você fica mais tempo no destino, já que tem que dividir os dias dedicados ao festival e os dedicados ao turismo. Misturar as duas coisas no mesmo dia não dá, você não aproveita nem uma coisa, nem outra.

Com mais dias no mesmo destino, há mais gastos com diárias, alimentação e transporte. E, se consideramos alguns festivais que são muito cobiçados pelas pessoas e acontecem em cidadezinhas menores (tem muito festival europeu assim), ainda pode ter um custo adicional de transporte (trem ou ônibus rodoviário) pra você se deslocar da capital para o destino do festival.

Pri no Lollapalooza Argentina. Foto: Divulgação

QCV – E o que vocês consideram mais importante na hora de organizar uma viagem para curtir um festival?

Gra – Bom senso. Como não é uma viagem tradicional, você precisa entender que haverá mais fatores limitantes. Como o festival tomará muito tempo, não adianta planejar roteiros de passeios muito extensos, por exemplo, pois o festival consome muita energia. Daí você não vai conseguir ter tanto gás pra turistar. Também é preciso entender coisas simples, tipo que não vai rolar de enfiar uma mala de rodinhas gigante no meio do camping do festival, pois geralmente tem lama e muita poeira.

Apesar de considerar que há questões gerais que orientam a viagem para festival, acho importante também ressaltar que cada festival é um caso diferente. Daí, é preciso de fato entender a logística e questões relacionadas a cada um deles para poder planejar a viagem da melhor maneira possível. Por exemplo, vejo muito essa diferença quando planejo viagens para festivais escandinavos e para festivais na França. Há muitos fatores determinantes em uma e outra região que fazem as estratégias de viagem serem diferentes.

Pri – Acho também que tem que ter a mente aberta e trabalhar com todas as possibilidades e ofertas de festival que existem hoje, e são muitas. Você pode se surpreender positivamente. Tem uns cinco anos que eu tento comprar ingresso pro Glastonbury e eu até hoje nunca consegui.

Se eu só admitisse ir pra ele e nenhum outro, eu não teria nem saído do Brasil. Neste ano, eu estava tão confiante que finalmente ia rolar, que eu comprei as passagens pra Inglaterra antes de ter o ingresso assegurado. Não rolou mais uma vez, e, como eu já estaria indo pra lá de qualquer jeito, usei o dinheiro que eu tinha separado pro ingresso do Glasto pra comprar ingresso pra três festivais pequenos em Londres (British Summer Hyde Park, Citadel Festival e Lovebox) e mais um na Bélgica (Rock Werchter). Eu me apaixonei com o Citadel, iria todos os anos se pudesse pro festival do Hyde Park e me questionei porque levei tanto tempo pra ir pro Werchter, que eu já sabia da existência há tempos.

Alguma dúvida de que o mundo é delas? Foto: Ismael dos Anjos

Essa mente aberta vale quando se fala em destinos também. Temos um foco muito grande na Europa porque lá a oferta de festivais é gigante e eles realmente são interessantíssimos, mas há épocas em que viajar pra América do Sul rende boas experiências de festivais e a um custo muito mais accessível. Há uns anos fiz um mochilão de festivais em março e fui pro Estereo Picnic (Colômbia), Lollapalooza Chile e Asuncionico (Paraguai), quando basicamente ninguém aqui no Brasil dava muita atenção para os festivais que acontecem na América do Sul – o Festivalando foi quem começou a dar visibilidade pra eles. Obviamente, o custo foi bem menor do que uma viagem pra Europa.

QCV – Em relação ao Brasil, como vocês veem o turismo musical no país? Esperavam que o site tivesse tanto impacto?

Gra – No Brasil, há um enorme potencial de turismo musical. Há muitos festivais rolando em todas as regiões durante o ano todo. Porém, alguns lugares ainda são muito carentes de estrutura para levar mais pessoas desse nicho até certas cidades. Então, talvez seja necessário ter mais visão por parte do poder público e mais diálogo com organizadores de festivais para tornar o setor mais dinâmico. Sobre o impacto do site, diante do contexto do país, esperávamos e era sim um dos objetivos que se tornou claro com o passar dos anos.

A gente queria fazer mais gente viajar para festival e não são poucos os relatos que recebemos todos os dias de pessoas que resolveram ir ao seu primeiro festival no exterior por causa do Festivalando. No entanto, eu fico meio p*** quando penso sobre isso, pois somos pioneiras aqui no Brasil no assunto, desbravamos um mercado que era puro mato antes de nós, introduzimos um jeito de falar e avaliar festivais que antes você não via em lugar algum. Mas aí, vejo que a gente alimenta muita gente e muito festival com as nossas ideias e não somos devidamente creditadas ou reconhecidas financeiramente por elas. Aí eu fico possessa com o tanto de gente cretina que tem nessa parada toda.

Gra no Rock in Rio 2019. Foto: Divulgação
Gra no Rock in Rio 2019. Foto: Divulgação

Pri – A música é um dos principais produtos culturais do Brasil, tem apelo no exterior, mas está longe de ser vista pelas políticas voltadas ao turismo como uma vertente a ser explorada. Bem diferente do que se vê nos Estados Unidos ou na Inglaterra, onde há projetos públicos e privados dedicados a estimular o turismo derivado da música. No momento em que estamos, há pouca esperança de que a gente chegue perto disso. Uma pena, pois o país desperdiça uma oportunidade de geração de receita e de fortalecimento de sua imagem cultural.

Sobre o impacto do site, temos clareza desde o início do nosso pioneirismo. Antes do Festivalando, o conteúdo de turismo não tinha olhar dedicado pra esse nicho de viagem pra festivais e turismo musical, e a imprensa musical tratava (e em grande parte ainda trata) o festival somente como a cobertura dos shows que acontecem no evento. O Festivalando deu um passo à frente nos dois segmentos, evidenciando o crescimento dos festivais internacionais, o interesse do público em participar deles e ampliou a cobertura do festival para a experiência completa do público comum, que começa com o planejamento financeiro, a preparação da logística de viagem e de transporte e, enfim, a experiência no festival, que por sua vez não se resume somente à música, mas a outros aspectos também.

Temos relatos diretos de produtores de festivais independentes que ESTUDARAM os nossos posts de análise de estrutura dos festivais (em que avaliamos transporte, limpeza, segurança, alimentação & hidratação, informações, conectividade) como referência para eles organizarem seus eventos. Teve gente que quando foi começar site do mesmo nicho veio nos procurar para trocar experiências. No ano passado, fomos a um festival aqui mesmo no Brasil e fizemos uma sugestão de roteiro a partir do passeio que fizemos com uma empresa de turismo. Neste ano, este festival sorteou o passeio com a tal empresa de turismo.

Turismo musical: Pri no Citadel, Festival em Londres. Foto: Divulgação
Pri no Citadel, em Londres. Foto: Divulgação

Percebemos o potencial de certos festivais antes que eles entrassem no radar geral. O Graspop, festival de metal na Bélgica, um dos gigantes da Europa hoje, virou sonho de consumo de muita gente em anos recentes, e o Festivalando captou isso logo lá em 2015. Naquela mesma época, o foco geral aqui no Brasil no início do ano era só no Lollapalooza Brasil, mas a gente estava lá acompanhando a primeira edição do Asuncionico, que hoje todo mundo considera como alternativa ao Lolla por ter um custo bem mais baixo.

Enfim, com o modelo editorial que criamos, influenciamos diretamente a produção de conteúdo de muita gente, os festivais, um segmento do turismo e, claro, a nossa audiência, que desde o início confiou na gente, nas nossas informações e segue nos motivando. Mas estamos passando por um momento de bastante frustração. Olhamos pra trás, vemos tudo o que construímos e o impacto que geramos em cinco anos, mas sentimos que não somos creditadas nem recompensadas na mesma proporção. É algo que não pode ser tão simples de se medir, e numa época em que as pessoas só olham para números de seguidores sem considerar COMO e SOBRE QUEM a influência de fato se exerce e se consolida, parece tudo ainda mais difícil.

Foto: Ismael dos Anjos

QCV – Para finalizar, qual a experiência mais marcante de vocês em um festival? E qual o preferido das duas?

Gra – Pra mim, foi muito marcante pisar no Wacken (DE) pela primeira vez e ver a cabeça de boi que é símbolo do festival, pegando fogo durante o primeiro show da minha primeira noite lá. O olho encheu d’água! Eu sou fã de metal, e o Wacken é o maior festival de metal do mundo. Então, na trajetória do Festivalando, esse foi o festival que mais me marcou. Também foi lá que assisti ao meu último show do Motorhead, antes da morte do Lemmy, e isso por si já é muita coisa pra ficar guardada na memória.

Como eu sou meio radical com o assunto musical, considero até um milagre que eu e a Pri tenhamos um festival preferido em comum. E ele é o Roskilde Festival, na Dinamarca. Mas também, é preciso ter respeito: é um dos dinossauros do início das eras de festivais no mundo que resistem até hoje, sem fins lucrativos e com experiências imersivas que não encontramos em qualquer festival no mundo. Pra mim, caso existisse uma escola pra ensinar produtores a fazer festivais legais, o Roskilde mereceria ser um módulo formativo completo!

Hellfest Open Air, Clisson, França

Pri – A minha experiência mais marcante ainda não aconteceu, porque eu ainda não fui para o Glastonbury, o meu festival dos sonhos, mas que já está ficando impossível pra mim rsrs. Mas, falando sério, o momento em que eu pisei no Roskilde vai ficar pra sempre na minha memória. Eu senti como se tivesse ligado uma chave pra uma dimensão diferente e não é sempre que um festival me faz sentir isso. O Roskilde te faz mergulhar numa outra realidade sem esforço algum, apenas por ser o que é, mas ao mesmo tempo por um entendimento acumulado ao longo de cinco décadas sobre como se faz um bom festival. Isso é um privilégio de pouquíssimos festivais hoje no mundo (o Glasto incluso). E também foi lá que eu vi os Stones. E não importa o quanto você é fã deles, o dia que você vê os Rolling Stones ao vivo é pra lembrar pra sempre.

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