Todo mundo aprendeu na escola sobre os grandes e aventureiros navegadores. Mas o que nós sabemos sobre as mulheres do mar? Tamara Klink, a mais jovem navegadora a cruzar o oceano Atlântico sozinha, foi atrás de descobrir onde estão elas, a começar por si mesma.
O que era apenas um sonho embalado pelo balanço do barco do pai, o velejador e escritor Amyr Klink, se transformou em ato de rebeldia: durante os estudos em arquitetura náutica na França, Tamara decidiu “crescer e partir“, palavras ditas por ela ao longo dos relatos de viagem e que formam o título do box literário lançado após a aventura em solitário.
O plano de atravessar o oceano sozinha por 3 mil quilômetros começou com uma sondagem ao pai, na tentativa de negociar um barco, sem sucesso. Para Amyr, Tamara deveria escrever sua própria história, com base em seus próprios esforços. Contrariada, não deixou a vontade de lado, mas teve mais força para transformar teimosia em realização.
“Por não contar com ajuda financeira ou conselhos da família no projeto, eu fiz algumas concessões arriscadas que hoje eu não faria, mas esse processo me ensinou lições que eu não poderia aprender de outra forma”, disse Tamara, em entrevista ao Quanto Custa Viajar.
Sem que os pais ou as irmãs soubessem dos planos ousados, e com ajuda de um amigo, Tamara começou a saga buscando por um barco que pudesse pagar. Foi na Noruega que aconteceu o encontro entre ela e Sardinha, um veleiro usado de 8 metros de comprimento. Juntas, elas formaram um cardume para chamar de seu, cheio de anseios, medos, dores, perrengues, risadas, amizades, amores, solitude e solidão.
Costurando o mar
Ainda na pós-graduação da faculdade, Tamara foi tramando os planos como uma jovem que aprendeu muito com os pais: estudando bastante, planejando todos os detalhes e colocando a mão na massa. Tratou de reformar o barco, ler as cartas de navegação, organizar pendências, conseguir patrocínios e realizar percursos menores a bordo de barcos maiores, com equipes experientes que conheceu por aí.
A primeira jornada em solitário aconteceu em 2020, no Mar do Norte, entre a cidade de Ålesund, na Noruega e Dunquerque, na França. O percurso rendeu um livro, o “Mil Milhas”, que representa a distância completa, além de vídeos para o canal da velejadora no Youtube, tão cheio de personalidade quanto Tamara, onde compartilha diversos detalhes da navegação, fala sobre a alimentação a bordo, a empolgação de cumprir trechos, as noites mal dormidas, as peças quebradas, as duras despedidas nos portos que quase a fizeram não seguir o rumo.
Determinada a não tirar a ideia de cruzar o Atlântico da cabeça, ela compartilhava as novidades apenas com a avó, Ana, sua confidente e apoiadora. Optou por não espalhar a notícia para mais ninguém que pudesse desencorajá-la. Mas até mesmo o sentido de coragem ganha contornos questionadores por parte dessa pensadora voraz.
Tamara acredita que a coragem, e não o medo, teria feito o projeto ir por água abaixo. “Eu nunca deixei de ter medo, e tenho certeza que se eu e o barco chegamos inteiros foi graças a ele. O medo nos ajuda a perceber o risco. Ele é instrumento importante de segurança“, elabora.
Mesmo que o tremor paralisante, os monstros que a gente cria na cabeça vez ou outra, possam impedir grandes vivências como as dela, a velejadora afirma ser preciso calcular o quanto do medo é real, fundado em riscos concretos, e o quanto é fruto da nossa imaginação.
“Eu tenho certeza que se soubesse dos desafios que teria, eu não teria partido. E não teria descoberto que era capaz de lidar com eles. Foram 7.000 milhas de muitos erros, muitos problemas, muitos imprevistos, e acredito que esses aprendizados vão me ajudar a enfrentar problemas maiores que virão”, reflete.
Diferente do que se possa imaginar, os acontecimentos da longa viagem não nos passam insegurança, mas vontade de fazer algo tão inusitado quanto dançar, em meio a tropeços e compassos, junto às misteriosas águas salgadas. O cotidiano no barco registrado em vlogs e textos íntimos transborda poesia.
Realizado em três meses, o trajeto de volta ao Brasil começou na França, fazendo paradas em Lisboa, nas Ilhas Canárias, e em Cabo Verde. Até chegar ao destino final, em Recife, capital de Pernambuco, Tamara ficou 17 dias em alto-mar no Atlântico, a ver navios, estrelas brilhando no céu, peixes voadores e outras criaturas reais ou imaginárias. “Dias e noites, e dias e noites, e dias e noites a fio, eu faço companhia pra mim mesma. Os novos assuntos são cada vez mais raros“, relata em um dos vídeos.
Ao atracar em terra firme, contou com a emocionante recepção da família, dos fãs e dos amigos. Amyr e Marina logo se surpreenderam com o modesto tamanho da Sardinha, mas talvez mais ainda em como a grande velejadora que chegava se fez caber na pequena embarcação à medida que crescia.
“Ouvir a minha própria voz me assusta.
Tamara Klink, no vídeo À Distância
Como se eu tivesse desacostumado a ouvir a vibração das minhas cordas vocais.
Como se eu pudesse esquecer a coreografia dos lábios para dizer cada palavra.
A posição da língua solta na boca.
Como se eu não soubesse mais manter o volume alto ou baixo da minha voz. Como se eu subitamente lembrasse, depois de muitos dias em silêncio, a frustração que é tentar conter em palavras sensações que não cabem na linguagem”.
A bagagem de aprendizados
A aventura certamente rendeu muitos aprendizados, a começar pela navegadora testemunhar o quão importante é registrar os acontecimentos em cadernos, exercício iniciado aos 8 anos de idade por incentivo da mãe, a fotógrafa Marina Bandeira, durante a jornada da família na Antártica.
O material da viagem rendeu não apenas um, mas dois livros prontos e já publicados. Diferente de “Mil Milhas”, o livro “Um Mundo em Poucas Linhas” aposta em um universo particular de desenhos, poemas e textos feitos ao longo da travessia.
Para ela, estar na própria companhia e fazer da escrita uma aliada oferece uma base de autoconfiança, da teoria registrada em linhas, à prática. “A gente é capaz de muito mais do que a gente pensa, de muito mais do que dizem para nós. Viajar sozinha e escrever um diário nos ajuda a nos dar conta da nossa envergadura.“
Ciente de seus privilégios, Tamara teve de enfrentar certo descrédito de seus esforços por conta do sobrenome de peso. Mas basta mergulhar na história que o julgamento fica para trás. “Isso pode dar a outras mulheres a impressão de que não seria possível para elas navegar por não serem filhas de navegadores. E eu faço questão de contar os processos que estiveram por trás de cada milha para permitir que outras mulheres possam saber que é algo que se prepara, se treina e se aprende”, constata.
Outro ponto a ser destacado é que ser filha de um dos velejadores mais conhecidos do mundo não lhe deu garantia de sobrevivência. “Meu pai e minha mãe foram grandes inspirações, mas a experiência e o conhecimento não vêm no DNA“, diz a navegadora, com 25 anos recém completos. “Precisei construir meu próprio caminho, comprar e preparar meu próprio barco e tomar decisões importantes que ninguém poderia tomar por mim.”
De maneira prática, resume como a consciência e o enfrentamento do medo a ajudou a tomar desde grandes até minúsculas decisões no dia a dia. “Toda vez que eu tenho preguiça ou medo de fazer algo desconfortável como entrar numa piscina gelada, eu digo pra mim mesma ‘Tamara, você atravessou o Atlântico, não tem desculpa para não pular nessa piscina!’.”
A navegação nasceu da limitação humana: não seria possível percorrer grandes distâncias sobre o mar sem os barcos. E o mar será sempre indiferente à nossa origem
Tamara Klink ao Quanto Custa Viajar
Novos desejos à vista
De volta à Paraty (RJ), onde passou boa parte da vida, Tamara disse estar feliz de voltar para o lugar onde tudo começou e onde aprendeu o que era o mar. Pretende passar um tempo não longe das ondas, porém mais próxima de quem havia deixado antes de navegar solo. “Minha maior aventura atualmente é buscar passar mais tempo com meus amigos e com minha avó. Quando a gente está o tempo todo em deslocamento, manter as relações com as pessoas que gente gosta é um grande desafio.”
A vontade de incentivar a navegação feminina aflorou ainda mais depois do contato com as navegadoras e mulheres que nutrem o desejo de navegar no Brasil. O veleiro Criloa, de Carina Joana, organiza vivências, regatas e travessias de vela, e apoiou Tamara ao longo da empreitada, sendo responsável pela comunicação da viagem por todo o tempo em que esteve no mar. “Somos unidas e participamos dos projetos uma da outra. Sem a Carina, a história da viagem não teria chegado aos lugares em que chegou. Esse mesmo apoio eu espero poder dar às outras mulheres.”
Enquanto aproveita o período de descanso, a eterna viajante mantém a cabeça cheia de planos. Ela releva na entrevista que tem “muita vontade de conhecer melhor os grandes rios do Brasil, e saber sobre os muitos “Brasís” que há dentro do nosso“. O destino da menina do Rio é realmente transitar entre as letras e as águas. Toca o barco, Tamara.
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