Quando a gente acha que já atingiu o cúmulo do absurdo no cenário político brasileiro, recebemos com bastante decepção a notícia de que sempre podemos ser surpreendidos. Numa denúncia recente, o Instituto ReclameAqui jogou a real ao anunciar que alguns governantes pegam descaradamente para si as milhas do povo, se aproveitando do benefício para a própria vantagem.
Os políticos, no auge da cara de pau, pegam para si os créditos gerados com a compra de passagens aéreas, feitas adivinha com o que? Isso mesmo, o dinheiro público, que está bancando mordomias de vereadores e deputados, os mesmos que recebem salários de mais de R$ 30 mil mensais, usados também para cobrir os custos das 100 viagens de avião por ano, segundo estimativa do Instituto e outros órgãos de análise política.
O valor de gastos de senadores e deputados federais em passagens aéreas para viagens oficiais em 2018 foi de R$ 53.078.359,89
Em parceria com a agência Grey, o site de reclamações lançou o projeto #MilhasdoPovo para pedir que os congressistas tenham a decência de devolver as milhas que não lhes pertence. No país da corrupção, parece um tanto evidente a má fé e o mau caratismo por parte dos parlamentares envolvidos no esquema.
27.935.979 é a estimativa de milhas públicas acumuladas a partir da somatória dos gastos dos deputados federais e senadores apenas em 2018
No ranking dos senadores envolvidos com as Milhas do Povo nos últimos anos, Randolfe Rodrigues, da Rede, gastou mais de R$ 200 mil em passagens aéreas com o dinheiro público. Em seguida vem o ex-jogador Romário, do Podemos, e em terceiro José Serra, do PSDB, que também foi acusado de um desvio de R$ 20 milhões no último ano, mas isso já é outra história…
A lista de deputados também consegue ser decepcionante o suficiente. Aparecem nomes como Ivan Valente, Jandira Feghali e Alessandro Molon – todos bem cotados entre os eleitores de esquerda – na lista.
O vídeo vergonhoso e constrangedor lançado pela campanha revela mais do que podemos falar aqui…Na frente das câmeras, vários deles se comprometem a doar as milhas depois de serem pegos, como Carla Zambelli (PSL) e Roberto Alves (PRB).
Ocupando o cargo pela primeira vez, a deputada e jornalista Rosana Valle (PSB) disse ser a primeira entre os 594 deputados federais e senadores a aderir a campanha. Ao Quanto Custa Viajar, Rosana declarou, diretamente de Brasília: “acredito que essas milhas devam ser usadas por quem realmente precisa viajar, seja por motivos de saúde, para representar o Brasil em eventos esportivos ou razões relevantes.”
No mês de abril, a parlamentar aproveitou uma das sessões na câmara para fazer um apelo citando o projeto: “Eu tive a confirmação de que fui a primeira Parlamentar a aderir ao programa Milhas do Povo. É um programa justo. Já que utilizamos passagens aéreas pagas com dinheiro público, nada mais coerente do que devolver essas milhas para a população”.
A nível de conhecimento, vale lembrar que cada deputado custa, em média, mais de R$ 2 milhões por ano para o bolso do contribuinte. Temos atualmente 513 deputados federais no país, ou seja, equivalem a R$ 1,1 bilhão por ano. Segundo consta no próprio site da Câmara, os deputados utilizam mensalmente a Cota para o Exercício da Atividade Parlamentar (Ceap), que varia de acordo com o estado onde foi eleito.
Representantes do Distrito Federal ficam com a “menor” quantia (R$ 30.788,66), enquanto os de Roraima recebem a maior: R$ 45.612,53. Tal valor pode ser aplicado para a compra de passagens aéreas, telefonia, serviços postais, hospedagem, alimentação, aluguel de carro, combustível, entre várias outras coisas. Se eles deixam de comprar a passagem aérea pois utilizam as milhas do povo, usufruem então do dinheiro que serviria de investimento para as mesmas.
Colocando na ponta do lápis, os valores individuais de cada um dos eleitos são os seguintes:
- salário de R$ 33.763 (sendo que se multiplica no primeiro e no último mês da legislatura)
- auxílio-moradia de R$ 4.253 ou apartamento de graça para morar
- verba de R$ 106.866,59 POR MÊS para contratar até 25 funcionários
- verba de R$ 30.788,66 a R$ 45.612,53 por mês para “cobrir custos”
Como se não bastasse tudo isso, uma reportagem de 2018 do site Congresso em Foco revelou que a Câmara já chegou a pagar R$ 45 mil em UMA passagem aérea – custeada com dinheiro público – para o deputado Claudio Cajado (DEM) e outra, do mesmo valor, para Antonio Imbassahy (PSDB).
Ilegal ou imoral?
Por ora, não há respaldo da lei ou algum tipo de regulamento que impeça os parlamentares de utilizarem as milhas geradas com dinheiro público. Porém, a discussão ao redor do tema se pauta pela ética, pois, sabendo do benefício, caberia aos políticos não as reverterem para uso pessoal, visto que foram pagas pelo contribuinte.
Ou seja, de alguma maneira esse crédito deveria voltar para o uso comunitário, conforme prega o projeto do Reclame Aqui. Segundo Felipe Paniago, diretor de marketing do Instituto Reclame Aqui, o uso das milhas “não está na lei mas é no mínimo antiético utilizá-las para viagens próprias”. Ele afirmou que o projeto também clama, subjetivamente, pelo uso consciente e moral da bonificação.
O advogado Pedro Amaral entende que, do jeito que a situação está no momento, fica fácil identificar o uso mal intencionado das milhagens. “Hoje, em época que essas milhas são transacionadas como se dinheiro fossem, fica ainda mais evidente o absurdo que essa distorção cria. Ao invés dessas milhas gerarem economia aos cofres públicos, servem de remuneração indireta para o enriquecimento indevido de indivíduos exercendo determinados cargos públicos”, explicou ele ao Quanto Custa Viajar.
Pedro ressalta também que a ação ajuda a constranger e a expor os políticos, mas que também seria imprescindível criar uma forma legal de barrar o uso das milhas públicas. “Não há uma previsão expressa que proíba que isso aconteça. Mas em princípios é uma regra geral que o indivíduo não pode se beneficiar no exercício de seu cargo. O que falta é uma manifestação judicial dizendo que esse tipo de coisa não pertence ao cidadão, a uma pessoa física. E a partir disso se toma medidas específicas para resolver o problema”.
Na realidade, essas milhas aéreas deveriam ser direcionadas para pessoas comuns em necessidade, como por exemplo os atletas brasileiros, que passam por inúmeros perrengues financeiros, especialmente quando falta patrocínio. Ficar sem o benefício prejudica o deslocamento dos mesmos até as competições, havendo então a necessidade de juntar alguma verba para passagens ou esperar o apoio de marcas e cias aéreas.
Também poderiam ser utilizadas para enviar grupos acadêmicos e científicos para fora do país, para ajudar estudantes ou pessoas que precisam fazer uma cirurgia cara e não têm condições. A deputada Rosana afirmou ao QCV que já existe uma pessoa na fila para utilizar as milhas dela. Porém, o Instituto Reclame Aqui afirmou que ainda não há como fazer o repasse pois a quantidade até o momento ainda é insuficiente para bancar uma viagem aos que estão na fila.
Quem ajudou a endossar o discurso de Rosana na câmara foi outra mulher: a deputada Rose Modesto (PSDB). Ela já doou milhas que foram direcionadas a Cauã Diniz, campeão brasileiro de Triathlon Infantil aos 14 anos. O vídeo abaixo mostra outros políticos que aderiram a campanha e, assim, beneficiaram quem realmente precisa das milhas:
Já tem brasileiro viajando com as #milhasdopovo
O povo pressionou e os políticos fizeram o que é certo. Já tem brasileiro viajando com as #milhasdopovo. Continue pressionando os políticos da sua cidade e do seu estado, afinal, se as passagens são pagas com dinheiro público, as milhas são do povo!Acesse www.milhasdopovo.com.br e entenda mais sobre o projeto.
Publicado por Reclame Aqui em Quinta-feira, 18 de abril de 2019
No site da campanha, que alega não ser de cunho político ou social, são exibidas histórias de quem precisa das milhas, além de haver um campo para você, que as necessita para algo importante, solicitá-las. A equipe do Milhas do Povo seguirá o trabalho de análise dos cadastros e também de recorrer aos políticos para que devolvam as milhas e as façam servir de modo mais digno, útil e consciente.
Até a publicação desta reportagem foram devolvidas 90 mil milhas, provenientes de três deputados federais. Se em pouco tempo de campanha já deu para ajudar ao menos quatro brasileiros, imagina se isso virasse rotina.
Projeto de lei
Se não há regra, por que não criá-las? Já houve, ao todo, sete tentativas de fazer um projeto de lei que transferisse o benefício das milhas para a União. Até o momento, nenhum deles passou, o que mostra que nada do que foi dito nesta reportagem é “desconhecido” por parte dos parlamentares. Pelo contrário, eles são tão cientes do assunto, que impedem a aprovação da lei de repasse das milhas para o que realmente importa.
O deputado federal Jerônimo Goergen (PP), que é réu em um processo por manter um funcionário fantasma – e ainda assim foi eleito – protocolou o Projeto de Lei 10030/2018 no ano passado para a criação de fundo para utilização e administração dos prêmios ou créditos de milhas oferecidos pelas companhias aéreas aos agentes públicos no exercício da função, retornando os mesmos para o Tesouro.
Em comunicado oficial, ele declarou: “Não existe dinheiro público, existe dinheiro do povo que está à disposição do poder público”.
Outra proposta do tipo foi apresentada pelo deputado federal Rodrigo Coelho (PSB). No Projeto de Lei 1786/2019, dispõe de “prêmios e/ou créditos em milhagens eventualmente obtidos por agentes, servidores ou particulares em decorrência da aquisição de passagens aéreas com recursos públicos”.
Procurado pelo Quanto Custa Viajar, Rodrigo se posicionou em relação à polêmica das milhas. “Não vejo com bons olhos essa conduta, já que mesmo sem ter desembolsado um centavo na compra da passagem aérea – paga pelo Poder Público -, o servidor tenha o direito a qualquer vantagem pessoal, em especial, ao acúmulo de milhagens. Isso ofende, inclusive, os princípios da Moralidade e da Impessoalidade, presentes em nossa Constituição.”
Segundo o projeto apresentado por ele, “não parece justo que o beneficiário que não desembolsou valores na compra da passagem aérea, quando em viagem oficial, possua o direito de obter qualquer vantagem pessoal para viajar utilizando os benefícios da passagem aérea adquirida com o dinheiro do contribuinte“.
O deputado está, segundo o Ranking dos Políticos, em 6º lugar como o melhor na função em termos de Brasil, e em 2º lugar quando a medição é feita no Estado. Até o dado momento, não acumula faltas nas sessões parlamentares.
Após a publicação desta reportagem, os advogados Pedro Amaral e Oscar Bohrer entraram com uma ação popular na Seção Judiciária no Rio Grande do Sul, requerendo uma declaração judicial para confirmar que as milhas emitidas por companhias aéreas geradas em viagens oficiais de parlamentares custeadas com recursos públicos são de propriedade do Estado e não incorporam o patrimônio dos parlamentares.
Dentro da abertura de processo coube o pedido de uma tutela provisória de urgência para congelar, imediatamente, a conta de milhas de todos os parlamentares nas companhias aéreas que operam no Brasil para assegurar a efetividade de eventual decisão judicial, evitando que eles venham a usar, vender ou transferir essas milhas no curso do processo, sem comprovar à companhia aérea que a aquisição ocorreu com recursos próprios.
Tivemos acesso ao documento, direcionado ao Senado Federal, que tem como fundamento: violação à moralidade administrativa, grave lesão ao patrimônio público, apropriação de recursos públicos por particular em decorrência de exercício de cargo, locupletamento indevido e quebra de decoro. É destacado, inclusive, os vídeos da campanha Milhas do Povo como prova de que os parlamentares têm completa consciência sobre o fato de incorporarem tal benefício irregular ao seu patrimônio pessoal.
A ação popular, porém, recorda que não há como “devolver” algo que não lhes pertence. “(…) estas milhas NUNCA incorporaram seu patrimônio pessoal, NÃO podem ser utilizadas em benefício próprio e SEMPRE foram de propriedade da União Federal. Não é facultativa, portanto, a devolução destas milhas ao Estado. É uma obrigação legal de TODOS os parlamentares“. O processo, autuado no dia 23 de maio de 2019, aguarda despacho na 1ª VF de Porto Alegre e pode ser consultado aqui.
Enquanto o céu for o limite, os brasileiros que precisam de milhas para, literalmente, voar com seus projetos se deparam com uma série de sonhos adiados e voos atrasados. Para além das viagens, têm de lidar com o atraso de um país desgovernado, uma terra sem lei onde os políticos não estão a serviço do povo que vota e sim de seus próprios privilégios. Há uma pergunta que paira no ar: a quantas milhas de distância estamos de um sistema justo?
Companhias aéreas podem cobrar pela reserva de assentos? O QCV responde!
Eu acho muito justo, que eles viajam com o dinheiro do Povo, portanto devolva para o povo.