O direito de ir e vir é universal. Mas como será a experiência de viajar para uma pessoa com deficiência no mundo excludente em que vivemos? A acessibilidade no turismo vem avançando, mas ainda a passos de tartaruga, dificultando atividades simples como sentar na poltrona do avião ou circular pela calçada. O Quanto Custa Viajar fez um levantamento dos destinos mais acessíveis e conversou com viajantes com deficiência sobre suas as aventuras e desventuras ao longo do caminho.
Quando a gente pensa em acessibilidade, precisamos colocar a interseccionalidade em pauta. Todo ser humano, independente de suas condições e características, tem direito à sua liberdade, inclusive de acesso. Garantir a acessibilidade é garantir que todo cidadão participe da sociedade ativamente e tenha, dentro do que lhe for possível, autonomia.
É assunto de política pública, mas também de consciência, afinal, qualquer pessoa pode e deve colocar a inclusão em prática, facilitando a vida dos cidadãos e viajantes que tenham mobilidade reduzida, surdez, baixa visão, cegueira, paraplegia, paralisia cerebral, nanismo, entre outras. Há diversos tipos de deficiência, cada uma com suas devidas complexidades e necessidades.
Pois é, acessibilidade vai muito além de um cadeirante. Tem também relação direta com obesos, gestantes, crianças menores de 5 anos, pessoas com limitações definitivas ou temporárias e idosos, que tendem a viver cada vez mais dado o aumento da expectativa de vida e, portanto, terão que contar com práticas, estruturas e serviços facilitando suas rotinas.
Sendo assim, é preciso que restaurantes, bares, hotéis, shopping center, museus, centros culturais, livrarias, teatros e outros locais estejam preparados para acolher as diferenças. O chamado desenho universal ajuda bastante nessa tarefa, pois em linhas gerais é um conceito que agrupa produtos, serviços e ambientes pensados para a maior diversidade possível de pessoas.
Piso tátil, rampas, equipamentos mecânicos, espaços amplos e funcionais, sistemas de audiodescrição, sinalização adequada e capacitação da equipe são alguns dos pontos a serem levados em consideração quando se pensa em acessibilidade.
Claro que é muito mais difícil adaptar o que já existe há anos, como vias públicas e construções históricas, mas não é impossível. Na hora de construir algo do zero, é importante levar essas questões a sério, até mesmo para aumentar o alcance de público.
Na análise feita pela reportagem, constatou-se que sites que procuram agrupar lugares acessíveis dentro do turismo são falhos, pois dependem que as próprias empresas, hotéis, restaurantes e agências alimentem suas plataformas, o que raramente acontece. Ou seja, dificilmente o viajante encontra as informações necessárias num lugar só, tendo de recorrer a blogs escritos por e para pessoas com deficiência, ou agências especializadas.
As pessoas com deficiência são, além do mais, consumidoras, embora ainda muito invisibilizadas pela indústria e pela mídia. Lembre-se: limitações físicas não medem poder de compra. Segundo estudo da American Institutes for Research (AIR), uma renda de aproximadamente US$ 490 bilhões se concentra nas mãos de pessoas com deficiência a nível global.
O último relatório produzido pela Open Doors Organization (ODO), especializada nesse nicho do mercado, aponta que apenas no Estados Unidos houve, mais de 26 milhões de adultos com deficiência viajando, gerando um gasto médio de US$ 17,3 bilhões ao redor do país entre 2013 e 2015. O número de investimento pode dobrar se considerarmos que parte deles viajaram acompanhados e o crescimento do nicho de viagens acessíveis cresce 22% ao ano.
56,7 milhões é a estimativa de pessoas com deficiência no EUA, que seriam “a maior minoria” da terra do Tio Sam. De 2013 a 2015, 73 milhões de viagens, a lazer ou a trabalho, foram feitas por este público.
Numa análise dos serviços de turismo, foram constatadas barreiras físicas ou de comunicação/atendimento ao cliente. O relatório de 53 páginas aponta que 72% dos viajantes encontraram grandes dificuldades, como discriminação, despreparo ou falta de acessibilidade, com as companhias aéreas, enquanto 65% alegaram obstáculos nos aeroportos. Os números, porém, estão menores em relação a 2005, quando eram 85% e 82%, respectivamente.
“Esses novos dados mostram que o mercado de viagens para pessoas com deficiência tem um impacto maior do que nunca sobre a indústria e a economia em geral”, disse Eric Lipp, diretor da ODO, em comunicado oficial. “Em grandes aeroportos como Miami e Minneapolis, as companhias aéreas agora precisam fornecer mais de 1 milhão de cadeiras de rodas por ano. E, à medida que os Baby Boomers continuam envelhecendo, você pode ter certeza de que nosso mercado continuará crescendo nos próximos anos.”
Dentro da pesquisa da ODO de 2005 e da Travel Industry Association (TIA) consta que metade dos viajantes usam a internet para pesquisar sobre viagens, e 43% fazem reservas on-line em hospedagens acessíveis.
Porém, 85% das pessoas ainda usufruía do bom e velho boca a boca na hora de buscar por indicações e informações, mostrando que existe uma rede poderosa entre as pessoas com deficiência, o que é meio óbvio quando pensamos sobre todas as barreiras que enfrentam desde o atendimento até a consolidação de um serviço aparentemente simples.
Os destinos favoritos dos norte americanos dentro do país são: Nova York (47%), Washington DC (45%) e Chicago (44%), superando Orlando, Las Vegas e Los Angeles (todos empatados com 42%). Canadá, México e países caribenhos e europeus estão entre as opções de quem fez viagens internacionais.
Na Europa, existem aproximadamente 80 milhões de pessoas com deficiência. A estimativa é de que o número suba para 120 milhões até 2020 dado o aumento da longevidade. Por lá, quem define e exige as obrigações inclusas ou a serem incluídas na legislação é a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.
“A acessibilidade é um elemento central de qualquer política de turismo responsável e sustentável.” – Taleb Rifai, Secretário-Geral da Organização Mundial do Turismo (OMT)
O responsável por checar, concentrar e promover a acessibilidade no turismo em diversos países europeus é a ENAT - European Network for Accessible Tourism, desenvolvendo boas práticas, combatendo o preconceito e compartilhando conhecimento na área. A iniciativa conta com Portugal, Espanha, Itália, Suécia, Bélgica, Alemanha, Grécia, Irlanda e Reino Unido entre seus membros ativos.
No site existe uma lista com detalhes do que alguns deles oferecem e relatórios com estudos de caso detalhados sobre acessibilidade em diversos países da União Europeia. Além disso, também promovem uma premiação anual que concede o título de Cidade Acessível como forma de reconhecer os avanços e esforços de cada um em relação à qualidade de vida, transporte e espaços públicos, informação e comunicação, serviços, entre outros.
Em 2019, a vencedora da vez foi Breda, nos Países Baixos, que segundo a ENAT vem “continuamente apostando em melhorias para a tornar a vida de pessoas com deficiência mais fácil”. No ano passado foi premiada Lyon, na França; em 2017 Chester, no Reino Unido; e em 2016, Milão, na Itália.
Na plataforma Pantou, os usuários encontram um diretório que indica destinos, hospedagens e serviços ao redor do mundo, mas funciona um pouco melhor no Velho Continente. Ao buscar por Portugal, por exemplo, encontramos uma agência especializada em passeios para pessoas com mobilidade reduzida na Ilha da Madeira, e o condomínio Casa do Lago, com opções totalmente focadas em oferecer luxo e conforto a quem possui uma ou mais deficiências.
Em termos econômicos, é uma ideia um tanto genial criar um ambiente totalmente adaptado e seguro para esse nicho do mercado. Portugal tem cerca de 1 milhão de pessoas com deficiência, além de 550 mil de crianças com menos de 5 anos de idade e outros milhares de habitantes com limitações temporárias ou definitivas.
A nível de serviços, um estudo feito pela Comissão Europeia em 2015 indica que havia mais de 300.000 fornecedores com potencial turístico acessível, estando em maior concentração no Reino Unido, França, Itália e Espanha.
Recentemente, a associação Bandeira Azul fez uma parceria com a fabricante de cadeiras adaptadas Total Beach Access no intuito de levar cadeirantes para desbravar as praias com tranquilidade.
Outro exemplo bem interessante é que neste ano foi lançado pelo Grupo de Ação de Turismo Inclusivo da Inglaterra e pela Alzheimer Society um guia de turismo dementia friendly, ou seja, destinado a falar sobre pessoas com demência, que chegam a um total de 850.000 no país. É uma maneira de orientar e conscientizar empresas sobre os desafios e necessidades dessa parcela da população.
Na América do Sul
Diferente do Estados Unidos e definitivamente da União Europeia, a América do Sul não consegue levar o assunto adiante em rede, ou seja, envolvendo todos os países que formam o Mercosul, de forma tão eficiente. Brasil, Argentina, Bolívia, Peru, Colômbia, Chile, Venezuela, Uruguai, Equador e Paraguai possuem leis específicas para pessoas com deficiência.
O tema foi discutido em 2014 e 2015 no evento “América Acessível: Informação e Comunicação Para Todos”, promovido pela Unesco. Mais recentemente, acessibilidade e inclusão são desafios reconhecidos por autoridades, empresários e organizações, que se voltaram para o assunto durante a Conferência “Infraestrutura para o Desenvolvimento da América Latina”, realizada em 2018.
Entre os problemas e soluções foram mencionadas barreiras nas infraestrutura, nos transportes e integração regional, na falta de recursos e parcerias público-privadas. Os assuntos podem ser checados aqui.
Foi no mesmo ano que a Argentina lançou um Guia de Turismo Acessível nas cidades de Buenos Aires, La Plata, Bahía Blanca e Mar del Plata. Está disponível on-line, impresso, em audiodescrição e na Língua de Sinais local. Em 2019, o país também lançou um guia de acessibilidade em museus.
Neste ano, o Ministério de Turismo do Uruguai anunciou que pretende se tornar um destino acessível até 2030, contando com o auxílio dos parceiros Programa Nacional de Deficiência (Pronadis) e Ministério de Desenvolvimento Social (Mides). Entre as ações previstas estão a conscientização popular, um manual de boas práticas em acessibilidade no turismo, tornar os meios de transporte mais acessíveis e exigir um cardápio para celíacos e diabéticos em companhias aéreas.
Em contrapartida, o Chile já implementa anos atrás diversas medidas dentro de um plano para as cidades e um para o turismo, delimitando tudo o que deve constar em espaços públicos e particulares. Por lá, são mais de 2 milhões de pessoas com deficiência, o que equivale a 20% dos habitantes.
Dados do Servicio Nacional de la Discapacidad apontam que a acessibilidade é urgente para 13% da população e necessária para 60%. Os gráficos do levantamento do governo são bem fragmentados, fazendo recortes de gênero, idade, localização, educação, saúde, ocupação e até mesmo da população indígena com e sem limitações.
O Serviço Nacional de Turismo (Sernatur) e o Serviço Nacional de Deficiência (Senadis) criaram um guia abrangente com um total de 115 hotéis e acomodações acessíveis no país.
Ainda dentro dos materiais de apoio aos viajantes, vale acompanhar o site Ruta Accessible, que fez uma lista de indicações turísticas dentro e fora das fronteiras chilenas, apontando o nível de acessibilidade em cada local de interesse.
Dentro dos parques nacionais, que atraem milhares de turistas anualmente, o Chile também vem tomando algumas medidas para tornar os passeios mais inclusivos. O Parque Nacional Cerro Ñielol, a 670 km de Santiago, inaugurou uma trilha para pessoas com mobilidade reduzida e cegas, seguindo a proposta de ser uma “terapia florestal” a partir do enaltecimento dos sentidos. O acesso é gratuito.
Outra opção de aventura disponível está no Peru. O sítio arqueológico Machu Picchu, um dos mais conhecidos do mundo, tem tour adaptado para cadeirantes, feito numa cadeira de rodas especial, por meio da agência Wheel the World, que organiza a viagem completa a partir de US$ 990 o pacote. Também oferecem viagens para Ilha de Páscoa, no Chile, e as ruínas do povo Zapoteca, no México.
De maneira geral, a acessibilidade ainda é precária no Brasil, já que o simples ato de trafegar a pé nas grandes cidades não é das tarefas mais fáceis para ninguém. Terrenos íngremes, calçadas irregulares, sujeira e falta de sinalização adequada são alguns dos desafios que a população enfrenta nas vias públicas. Dentro e fora de estabelecimentos, às vezes sequer os banheiros cumprem as regras adequadas para atender o público como deveria.
Quem garante ou deveria garantir uma política de inclusão no país é o Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (Conade), que no atual governo faz parte da pasta da Ministra Damares Alves, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, que aparentemente está mais preocupada se meninos devem vestir azul e as meninas vestirem rosa.
A Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), por meio da NBR 9050, estabelece critérios para a acessibilidade em edificações, mobiliário e espaços e equipamentos urbanos. Dentro da Constituição, existe a Lei 13146, dedicada inteiramente aos direitos da pessoa com deficiência, e ainda apoio em outras leis, como a 2098 e a 10048, que obrigam o atendimento correto e respeitoso às mesmas. Especialistas afirmam que a legislação é bem completa; o desafio mesmo é cumpri-la.
Em caso de violação dos direitos humanos, disque 100 e exija seus direitos.
Até mesmo o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) tem um conjunto de ações no campo da mobilidade e acessibilidade urbana. Lançou em 2014 o Caderno Técnico nº 09 - Mobilidade e acessibilidade urbana em centros históricos, visando a adaptação correta dos mesmos.
De acordo com o Censo 2010, existem 45.623.910 de pessoas com deficiência no Brasil, em maior ou menor grau.
A deficiência visual está presente em 18,6% da população brasileira, seguida por deficiência motora, deficiência auditiva e, por fim, deficiência mental ou intelectual. Há também 17,4% de população obesa; 13 milhões de crianças de até quatro anos de idade; e 23,5 milhões de idosos.
Os dados apresentam ainda os problemas enfrentados em território nacional:
- Carência de estudos e pesquisas sobre o perfil do turista, diagnósticos e estudos de casos
- Pouca informação existente acerca de acessibilidade dos atrativos, empreendimentos e serviços turísticos do país
- Baixo nível de acessibilidade em empreendimentos e na prestação de serviços turísticos
- Baixa qualificação dos recursos humanos no atendimento às pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida e baixo nível de acessibilidade em empreendimentos e na prestação de serviços turísticos
- Infraestrutura turística pública inadequada
- Poucos destinos, empreendimentos e atrativos turísticos acessíveis posicionados no mercado
- Pouca participação das pessoas com deficiência no mercado de trabalho do turismo
Podemos considerar que a gestão federal de 2007–2016 foi mais eficiente e assertiva em termos de incentivo à acessibilidade, apresentando ações, congressos, debates e planos de expansão.
Em 2016, o Ministério do Turismo investiu R$ 75 milhões em obras de adaptação para acessibilidade no Rio de Janeiro dada as Paraolimpíadas. Entre trancos e barrancos, ao menos o mega evento tornou a cidade mais acolhedora a diversos tipos de público, expandindo a rede hoteleira.
A operadora Rio Accessible Tour promove diversos passeios acessíveis na Cidade Maravilhosa.
No mesmo ano, o MTur lançou um guia colaborativo de turismo acessível, um programa de turismo acessível e a cartilha “Dicas para atender bem turistas com deficiência“, com orientações para o prestadores de serviço e gestores. A publicação é muito didática, bem elaborada e resume bem as demandas de cada deficiência; já o guia carece de informações e de divulgação.
O órgão afirma que pessoas com deficiência viajam menos no país por pura motivação e não necessariamente condição econômica. Elas têm dificuldade de encontrar serviços, produtos, instalações e cidades que atendam melhor suas necessidades. Assim, ao não viajarem, evitam constrangimentos.
Os impactos da inclusão chegam a toda a população, com ou sem deficiência, que de alguma maneira se beneficia ou se beneficiará com a locais acessíveis. Além de atuar como um motivador, o setor é também um nicho de mercado a ser explorado e um impulso econômico, atraindo investidores, consumidores e empresas especializadas para cada cidade.
Impactos positivos da acessibilidade no turismo e da inclusão no Brasil
Entre os bons exemplos nacionais está a cidade de Socorro, em São Paulo, referência em turismo de aventura acessível. Foram tomadas diversas ações para contribuir com a inclusão, envolvendo até mesmo adaptação das instalações de hospedagem para pessoas com deficiência visual na companhia de cão-guia.
O município com pouco mais de 35 mil habitantes é um exemplo de comprometimento, visão e gestão, visto que não basta fazer as coisas apenas porque a legislação exige - como ainda funciona em boa parte do país – , mas sim porque toda a sociedade se responsabiliza pela inclusão, o pertencimento e a qualidade de vida do outro. E mais: os estabelecimentos em Socorro não recebem alvará caso não cumpram com as normas de acessibilidade.
Os hotéis-fazenda Campo do Sonhos e Parque dos Sonhos foram premiados em 2016 nas categorias de “melhor projeto para pessoas com deficiência” e “prática de turismo responsável” na World Travel Market (WTM) de Londres, a maior feira de turismo do mundo.
Os investimentos dos empreendimentos tiveram início a 18 anos atrás, incluindo infraestrutura, atividades de aventura e trilhas adaptadas, mapas e cardápios em Braille. É lá também que acontece o evento “Encontro de Gerações”, que compartilha as ações das hospedagens reconhecidas a nível global, além de debater questões acerca da acessibilidade no turismo.
Tome nota: algumas cidades do Brasil receberam exemplares da cadeira Julietti, adaptada para trilhas de difícil acesso em parques nacionais. Para usá-las, não é preciso pagar nada, apenas retirá-la nos locais listados aqui.
No caos de São Paulo, há muitos problemas urbanos e cotidianos para resolver, mas o turista consegue encontrar meios de ser atendido, seja em hotéis, restaurantes, transportes e algumas vias públicas. O metrô conta com profissionais capacitados e infraestrutura acessível. Nas linhas de ônibus, são cerca de 14 mil veículos adaptados, enquanto os táxis especiais podem ser solicitados pelo telefone (11) 4117–3775 ou pelo aplicativo Taxi Preto Acessível.
Na área cultural, há mais de 300 atrativos totalmente acessíveis, como o Museu do Futebol, que acolhe muito bem os deficientes visuais, contando com maquetes e pisos táteis, imagens em relevo e visitas guiadas com audioguias.
Destacam-se ainda destinos como Foz do Iguaçu, que tem um dos maiores números de pontos turísticos acessíveis. A estrutura do Parque Nacional, onde ficam as famosas cataratas, é adaptada para cadeirantes e visitantes com mobilidade reduzida.
Passarelas amplas, rampas, elevadores e bondinho foram implementados no local, que chega a atrair mais de um milhão de turistas por ano. Quem for mais radical pode até saltar de paraquedas com profissionais treinados em atender pessoas com deficiência.
No Nordeste, as cidades de Recife, Olinda, Jaboatão dos Guararapes, Fernando de Noronha e Petrolina receberam treinamentos de acessibilidade pelo Sebrae, no intuito de acolher melhor os turistas e, consequentemente, os moradores.
Junto a iniciativa foi implementado pelo governo do Estado o Praia sem Barreiras em 2014, que segue até hoje em cinco praias de Pernambuco: Praia do Sueste, na Ilha de Fernando de Noronha; Praia da Boa Viagem, no Recife; Praia de Porto de Galinhas, em Ipojuca; Praia de Candeias, no Jaboatão dos Guararapes; e Praia de Tamandaré, em Tamandaré.
No caso, equipamentos adaptados proporcionam um dia cheio de diversão e inclusão em termos de acessibilidade, com cadeiras de rodas anfíbias, que podem entrar no mar, jangadas e mergulho de cilindro, espaço para prática de vôlei sentado e piscina infantil entre as opções para o público usufruir.
O Programa Praia Acessível, semelhante ao mencionado acima, chega à praia da Iracema, em Fortaleza (CE), e a algumas praias de Maceió (AL).
A inspiração certamente veio do projeto Praia para Todos, nascido em 2008 no Rio de Janeiro, através do Instituto Novo Ser, para proporcionar infraestrutura acessível às pessoas com deficiência nas praias da cidade.
Atualmente funciona por temporada, aos sábados e domingos na Barra da Tijuca, levando diversas atividades aos participantes, seja no mar ou na areia. Até 2018 foram realizados mais de 26.500 atendimentos diretos e indiretos.
Em Minas Gerais, quem se destaca é Uberlândia, que lá em 2010 já havia sido mencionada pela ONU como uma das 100 cidades modelo em acessibilidade. Assim como Curitiba, se tornou referência em transporte público, tendo 100% da frota adaptada. Implementou ainda 500 rampas de acesso ao redor da cidade e uma lei que exige a vistoria do Núcleo de Acessibilidade em obras de uso público.
Como é ser uma pessoa com deficiência que viaja?
Mariana Baierle
A jornalista gaúcha Mariana Baierle tem baixa visão (com cerca de 5% a 10% de visão) desde que nasceu e já fez algumas viagens pela América Latina e Estados Unidos, onde conheceu Los Angeles e Nova York.
A experiência, porém, não foi a melhor que teve. “A acessibilidade física é ótima, porque há muitas rampas, elevadores, calçadas sem buracos e banheiros acessíveis. Mas a abordagem humana é muito precária. Nada funciona a partir do momento em que você necessita de uma pessoa“, alarma ao Quanto Custa Viajar.
Uma das maiores dificuldades foi o acesso aos museus, que não deram o auxílio adequado. “Não há um guia para acompanhar e no MoMa (Museum of Modern Art) me deram no máximo um guia em Braille. Isso foi uma abordagem péssima pra um museu desse tamanho num país de primeiro mundo”.
Outro ponto que ela ressalva é que embora existam obras de arte com código QR, lido por smartphones, tampouco ajudam pois não há audiodescrição. Já no Museu de Cera Madame Tussauds, pode tocar nas esculturas. “Tive dificuldade de entender quem eram as pessoas retratadas ali, mas ao menos toquei nas peças, o que foi interessante. De qualquer forma, também faltou informação e um funcionário para auxiliar“, argumenta a viajante.
Já no nosso simpático vizinho Uruguai, Mariana visitou Montevidéu, Colônia del Sacramento, Carmelo e Punta del Este. Por lá, vivenciou algo totalmente oposto em termos de acessibilidade atitudenal, ou seja, referente às atitudes. “Foi um dos lugares memoráveis pela abordagem dos uruguaios, que foram muito gentis e acolhedores“.
A jornalista conta que uma senhora atendeu ela e o marido, que também é deficiente visual, de forma bastante empática. “Ela soube se colocar no nosso lugar, entendendo a nossa dificuldade e sendo muito específica nas orientações. Nos deu informações bem específicas sobre a cidade, com marcos turísticos e coisas táteis em relação à localização“.
A atitude é um dos pontos cruciais em termos de acessibilidade, segundo Mariana. “Nós, deficientes visuais, precisamos muito da abordagem humana. De ter alguém disposto e empático para guiar, transitar num espaço, indicar onde fica o banheiro…só a rampa ou um elevador de acesso não resolve o nosso problema. Acho que a acessibilidade precisa ser 50% humana e 50% estrutural”.
Ela aproveita para citar uma frase da coordenadora do projeto Assembleia Inclusiva, Juliana Carvalho: “é preciso construir rampas para a cabeça das pessoas“.
Tenho 33 anos. Ninguém precisa estar cuidando de mim ou perguntando onde estão meus pais. O que a gente precisa é muito simples: auxílio.
Bruno Favoretto
Cadeirante desde os 17 anos, por tomar um tiro acidental de um despreparado e truculento policial militar, o jornalista Bruno Favoretto fez das viagens um meio de lazer e trabalho por ao longo da vida, especialmente quando atuou como editor numa revista especializada em turismo.
Depois de rodar 22 países, se sentiu acolhido na cidade das bicicletas e considera Amsterdã seu “lugar no mundo”. Considera que na Europa também não teve grandes obstáculos pelo caminho e ressalva a possibilidade de lugares históricos se tornarem acessíveis. Basta querer.
“Não é preciso estragar o calçamento histórico de país nenhum, mas colocar uma pista plana no meio, por exemplo. Exemplo disso é que eu fui na Casa de Virgem Maria, na Turquia, datada em 33 d.C, e foi possível andar lá“.
Na América Latina, cita Socorro e Foz do Iguaçu como bons exemplos, e afirma que sua cidade, São Paulo, vem melhorando ao longo do tempo. “De uma forma geral, acho que acaba sendo a menos pior. Hoje você encontra elevador no McDonald’s, por exemplo. A Av. Paulista foi planificada e mal ou bem tem uma incidência melhor de rampa. O problema sério aí é que a meu ver, por mais que digam o contrário, ninguém as testa, porque elas não são adequadas”, questionou.
Bruno foi bem infeliz em Buenos Aires devido à falta de empatia do hermanos. Ele relata que os taxistas são os mais preconceituosos em relação às pessoas com deficiência. “Foi uma dificuldade. Os caras não gostam de levar cadeirantes“.
Já no Uruguai, se deu bem com os moradores, mas nem tanto com a vivência na cidade. “Tem uma galera com mentalidade vanguardista, que eu acho incrível! Mas foi uma decepção ver que estão atrasados estão atrasados nessa questão de calçamento, rampa, etc“.
A diferença foi sentida em Santiago, onde conseguiu trafegar perfeitamente com sua cadeira de rodas. “As rampas são extremamente adequadas, e se nivelam à pista dos carros. O plano se expandiu para 48 cidades, como Viña del Mar e Valparaíso“, afirmou.
“O Chile prova que não é preciso ser Berlim para ter esse tipo de atitude que inclui a todos”, argumentou Bruno.
Michele Simões
A estilista e consultora de moda Michele Simões sofreu um acidente de carro em 2006 e se tornou cadeirante. Ela ficou quatro anos sem conseguir se sentar, mas depois das várias dificuldades do processo de recuperação das fraturas mais graves, resolveu se jogar num intercâmbio de três meses em Boston.
A experiência foi um aprendizado e tanto, até porque na época, havia poucas informações para pessoas com deficiência e nenhuma agência especializada. Foi aí que ela percebeu o quanto não era enxergada como consumidora. “Tive que ir informando os profissionais de turismo sobre as minhas exigências, como por exemplo a altura da cama, a disposição de uma cadeira de banho, tudo“.
Apesar de morar nos EUA por três meses, no fundo acredita que não existe nenhum lugar ideal, mas sim menos piores em termos de acessibilidade. “Eu considero Boston o melhor nos Estados Unidos porque morei lá três meses e foi onde consegui fazer a maior parte das coisas, desde lazer até me locomover pela cidade, comprar, ir num bar e etc.”
Foi o primeiro grande passo para visitar outros sete países depois: Argentina, Chile, Canadá, Espanha, França e Inglaterra. No território europeu, também não teve tantos desafios com relação ao tráfego, mas com outras questões. Chegou a desistir de ir para a Itália por não encontrar uma hospedagem adequada com suas necessidades e seu bolso.
Na Espanha, encontrou um quarto excelente para ficar, mas o hotel ainda deixava a desejar em termos de acessibilidade. “Eu só coube no elevador, daqueles antigos, porque minha cadeira era bem pequena. É preciso sempre pedir fotos específicas das hospedagens porque o que é considerado acessibilidade ainda é muito subjetivo.”
Já no Brasil, Michele segue dentro da estatística: não viaja pelo receio do que vai encontrar pela frente. E com razão. “Estive em João Pessoa a dois anos atrás e foi terrível. Eu queria muito passear na parte histórica e simplesmente não consegui sair do carro“, indagou.
“Meu critério quando vou viajar é me libertar, ter o máximo de autonomia. Isso me afasta do Brasil, porque apesar das leis serem ótimas, infelizmente não temos uma política de acessibilidade avançada na prática”, conclui.
Próxima parada: constrangimento!
Para os viajantes com deficiência, aeroporto é sinal de pesadelo a vista. Pelas experiências relatadas, ainda faltam recursos não apenas estruturais, mas treinamento e atendimento humanizado por parte dos funcionários.
Mariana sente falta de alguém para ajudar no saguão, que geralmente é bem amplo, mas sem sinalização adequada ou alguma equipe de apoio. “Às vezes estou com pressa mas gostaria de ir a algum lugar ou passar numa lojinha antes. Faz muita falta não ter alguém disposto a me ajudar a encontrá-las”.
Outra questão que ela apontou é que pessoas com deficiência são categorizadas como pessoas com necessidades especiais, o que engloba uma série de limitações específicas, porém não há quem as atenda de forma mais personalizada. “Idosos, cadeirantes e pessoas cegas ou de baixa visão são colocadas no mesmo grupo, numa mesma fila, mas sem levar em consideração as necessidades individuais de cada um”.
Ao tratar todas as pessoas com deficiência da mesma forma, o setor se mostra precário e as deixam em situações bem desconfortáveis e constrangedoras. Mariana conta que certa vez queriam a locomover numa cadeira de rodas. “Achei um absurdo e me neguei a fazer isso, porque eu posso caminhar. Caso contrário, não teria problema algum”, argumenta. De fato, o ideal seria que algum funcionário a guiasse.
Tal fato é respaldado pelo relato da advogada Ericka Jones, que se especializou em direitos da pessoa com deficiência, publicado no site This Points Guy: “se você tem qualquer tipo de deficiência, eles vão presumir que você precisa de uma cadeira de rodas. Houve relatos de pessoas cegas que foram colocadas em cadeiras de rodas porque é mais fácil fazer isso e empurrá-las do que orientá-las da maneira que pedem.”
Ela também se queixa da forma infantil como é tratada. “Se estou viajando com alguém, eles quase sempre conversam com essa pessoa sobre mim, bem na minha frente”, disse. “Eles sempre assumem que essa pessoa é minha cuidadora. É muito frustrante. Eles estão tirando minha personalidade.“
Em termos de estrutura para deficientes visuais, as aeronaves também deixam a desejar: carecem de materiais em Braille, guias audiodescritivos ou letras ampliadas em alto contraste, que permitem a leitura por pessoas com baixa visão. “Eu nunca consegui chegar na minha poltrona do avião de forma autônoma“, lamenta Mariana.
Já Bruno conta que não há um procedimento padrão no atendimento aos cadeirantes. Em todo caso, a autonomia também costuma ser deixada de lado. “Ao chegar na porta do avião somos transferidos para uma cadeirinha fina que muitas vezes a tripulação sequer sabe onde está, e então eles nos conduzem até o nosso assento”.
Porém, o jornalista cita que as poltronas mais espaçosas oferecidas pela Gol Linhas Aéreas permitem que se acomode sozinho no voo. “Esse é um exemplo positivo, de algo que nunca vi em nenhum lugar do mundo”.
O pior problema mesmo é a falta de cuidado com as cadeiras de rodas, que constantemente são danificadas nos aeroportos, sendo uma desagradável surpresa para quem chega a um destino longe de casa.
De acordo com o Air Travel Consumer Reports, do departamento de transportes norte americano, mais de 2 mil cadeiras de rodas foram danificadas por companhias aéreas norte americanas no primeiro trimestre de 2019.
Bruno já teve a cadeira quebrada ou deteriorada ao menos três vezes, dentro e fora do Brasil. Michele endossa a fala do amigo. “As companhias aéreas não entendem que existem questões muito pessoais e específicas na confecção da cadeira de rodas, como angulação, tamanho…se a gente ficar sem, acaba com a viagem“.
Amei a reportagem. Está bem completa, uma das poucas que encontrei até hoje retratando a realidade do turismo acessível no Brasil. Obrigada pela oportunidade de contribuir um pouco, também, através da entrevista.
Aos poucos, com o tema sendo discutido e abordado em várias frentes, chegaremos a uma realidade diferente.
Abraços
Nós que agradecemos a sua participação Suelen 🙂 Que o futuro da acessibilidade seja próspero!