Você já sentiu que a Instagram não está te falando toda a verdade sobre essa vida nômade? Ou acha mesmo que viajar o mundo enquanto trabalha é aquela maravilha de abrir o notebook em uma praia paradisíaca e trabalhar enquanto degusta uma margarita? Bom, tem algumas coisas que você precisa saber sobre a vida de nômade digital…
A primeira delas é que esse texto é escrito por uma semi-nômade e, portanto, acho que tenho um pouco de propriedade para falar sobre o assunto. Nos últimos quatro anos, passo pelo menos três meses/ano vagando pelo mundo enquanto faço malabarismos com as contas.
Há uma semana eu enfrentava temperaturas recordes em Porto Alegre, algo próximo dos 35ºC, mas com sensação térmica de inferno, devido à umidade. Enquanto escrevo, a temperatura em Girona, na Espanha, onde estou agora, é de 2ºC – e a previsão é de termômetros negativos nos próximos dias.
Não reclamo, mas minha saúde às vezes dá um puxão de orelha.
Dessa vez, aluguei um apartamento de dois quartos por um valor razoável (confesso, um luxo para o meu orçamento). É algo bem maior do que as pensões com banheiro compartilhado em que costumo me hospedar – e onde estive na última semana em Lisboa. Eu não sou a única pessoa que baixa de classe social quando sai do Brasil. Praticamente todo nômade que conheço vive mais perrengues do que situações instagramáveis.
Coisas que você precisa saber sobre a vida de nômade digital
É a vida que se escolhe, mas ela não é perfeita.
Nas poucas vezes em que estive em praias paradisíacas [saudade, Playa del Carmen], a internet não pegava bem. Quando você trabalha via internet e a conexão é ruim, é bem provável que leve o dobro do tempo para fazer qualquer atividade. Resultado, fiquei tão estressada que morri de vontade de rever aquela cidade bem cinza cheinha de concreto, mas com wi-fi de alta velocidade.
Eu não estou sozinha nessa – e esse texto não é sobre a minha vida. Tanto é que bati um papo com o Fernando Kanarski sobre o assunto. O Fernando vive como nômade há três anos e é responsável pelo site Travel ‘n Tech, além de compartilhar sem medo as maiores frustrações de uma vida nômade no Medium (segue o moço lá que você não vai se arrepender). Fácil perceber que ele tem bem mais experiência do que eu em nomadismo.
Uma conversa com esse especialista em marketing digital é também um pequeno choque de realidade. Ele diz que, quando se tornou nômade, há três anos e meio, ainda havia pouca informação sobre o assunto. Com isso, o perrengue corria solto, sendo que os mais frequentes eram intoxicação alimentar, falta de internet e solidão.
“A Tailândia é um dos meus países favoritos e tem algumas das comidas que mais gosto, porém tem um problema sério: a falta de higiene. Então, na minha segunda visita ao país, eu peguei uma séria intoxicação alimentar, que me deixou de cama por dias, sozinho, numa parte relativamente isolada do país. Foi bem complicado e arriscado, principalmente por estar sozinho“, contou ele sobre suas más experiências à mesa.
Por sinal, muitos nômades digitais escolhem a Tailândia como destino não apenas pelas paisagens bonitas, mas também por um detalhe: o país é muito barato. É algo que qualquer pessoa que recebe em uma moeda e gasta em outra deve levar em consideração.
O trabalho continua sendo trabalho
Sobre os problemas de conexão, Fernando lembra que viveu um pequeno pesadelo digital na Namíbia: “Eu fiz uma roadtrip pelo país. Foi praticamente uma semana quase que completamente desconectado. Mesmo pré avisando os clientes, algum problemas ocorreram durante esta semana e alguns clientes ficaram um pouco bravos pela indisponibilidade“.
Essa não foi a única vez que enfrentou a ira dos clientes insatisfeitos, visto que alguns deles não entenderam bem o trabalho remoto e nômade. “Os projetos até começaram, mas em 1 ou 2 meses não consegui sintonia com os clientes, que não viam com bons olhos o fato de eu estar longe. Chegamos à conclusão que não valia mais a pena continuar. Esse é um problema que muitos nômades enfrentam, principalmente os que trabalham para mercados latinos. Brasileiros (e latinos no geral) gostam de contato, reunião, presença. Então, gerenciar trabalho remoto para estes clientes acaba sendo mais complexo, pois é preciso sempre mostrar que se está presente e que o trabalho remoto funciona“, destaca.
Planos frustrados
O trabalho como autônomo também pode dificultar na hora de conseguir um visto. Fernando percebeu isso quando decidiu conhecer a Austrália. “Por duas vezes já comprei passagem e em seguida apliquei para o visto. O processo é relativamente fácil, mas, por ter uma situação um pouco mais complexa (ser dono de uma empresa, não ter casa, veículo ou tantos vínculos com o Brasil) meu visto foi negado as duas vezes. Fazendo eu ter de mudar de planos, perder dinheiro com as passagens compradas e ficar um pouco frustrado. Estar preparado para perrengues e mudanças de planos é muito importante, pois eles irão acontecer uma hora ou outra“.
Apesar dos pesares, a solidão é mesmo um dos dilemas mais encarados por nômades mundo afora – e nosso entrevistado não deixou de lado essa faceta nada agradável da vida entre meridianos. “Por viajar sozinho, ser tímido e ir para alguns lugares onde não tenho conhecidos, às vezes bate uma solidão imensa e saudade de amigos e família. A internet ajuda a diminuir um pouco, mas, mesmo para mim, que sempre me virei sozinho, ficar isolado por muito tempo é triste demais“.
Nomadismo-perrengue: nossa entrevista com o Fernando
Quer mais detalhes sobre essa vida nômade? Essa entrevista pode ser o relato mais fiel – e menos agradável – sobre como é viver sem endereço fixo. Deixamos de lado as perguntas bonitas e fomos logo querendo saber sobre aquilo que dá errado e ninguém nos conta.
Quanto Custa Viajar – Sobre o custo de vida: muita gente diz que gasta menos como nômade do que quando vivia no Brasil. Isso aconteceu com você? Em que cidade vivia aqui?
Fernando – Eu morei em Curitiba por 9 anos. Meu custo de vida como nômade é bem maior do que no Brasil. Isso inclui o fato de eu mudar de país todo mês, voltar ao Brasil algumas vezes ao ano e também querer frequentar países mais caros. É possível sim viver com um custo de vida baixíssimo, porém provavelmente vários confortos terão de ser privados, além de ter de escolher países extremamente baratos, como Indonésia, Philipinas e Tailândia por exemplo, colocando em risco o trabalho que precisará ser executado, além da sanidade mental pela falta de alguns confortos.
Como eu gosto de circular por diversos países, eu tento intercalar entre lugares mais caros (Holanda, Alemanha, Singapura, Estados Unidos, Coreia) e países mais em conta, (como Indonésia, Tailândia, Croácia, Hungria).
Acredito que, no geral, o custo será maior que no Brasil devido ao deslocamento, seguro viagem e hospedagem de curta duração, por exemplo. É importante lembrar que nômade precisa ter um bom lugar de trabalho, precisa viver como um local e ter boa conexão de internet. É o que o difere de travellers e mochileiros, que acabam achando hospedagens alternativas, trabalhos voluntários e baixíssimo custo de vida.
QCV – Quais os destinos em que se virou mais fácil – e quais aqueles que foram uma super roubada?
Fernando – Existem alguns países que estão virando verdadeiros refúgios de nomadismo digital, devido ao baixo custo de vida, boa internet, grande quantidade de cafés e crescimento de comunidade de inovação. Entre estes lugares, a Ásia domina e tive muita facilidade para trabalhar em todos: Tailândia, Malásia, Camboja, Vietnã, Indonésia, Philipinas, são os astros. Leste Europeu também tem vários lugares com este status, como Hungria, Croácia, República Tcheca. A América do Sul tem se destacado com alguns polos, como Chile, Argentina e várias cidades brasileiras, além da Colômbia, que ainda não visitei.
Os roubada foram os que ou eram muito caros ou com pouca infra-estrutura de internet e cafés. Tive mais dificuldade em trabalhar, por exemplo, no Panamá (poucos cafés), na Namíbia – embora tenha adorado as belezas naturais do país – (internet ruim), Fiji e Cook Islands (internet ruim e cara), Emirados Árabes (tudo longe e poucos cafés), Suécia, Islândia, Nova Zelândia, Suíça, EUA e Japão, que, embora incríveis, são lugares muito caros para passar mais do que alguns dias.
QCV – Como se vira com dinheiro no exterior? Usa sua conta brasileira durante as viagens?
Recentemente eu consegui reorganizar minha vida financeira para economizar até 6% em relação ao modo que fazia nos últimos anos. Como minha empresa e clientes são brasileiros, meu dinheiro está no Brasil, em um banco brasileiro, com cartão de crédito brasileiro. Porém, para as viagens, recentemente eu aderi ao cartão N26, um “nubank” alemão que disponibiliza um cartão de crédito que também permite saque no mundo todo.
Eles utilizam a cotação do euro comercial para fazer as transações, fato que já dá uma economia grande frente ao euro turismo, utilizado pelos bancos brasileiros. Além disso, eu posso transferir dinheiro para este cartão utilizando o serviço Transferwise, que, além de usar a cotação do euro comercial e não turismo, tem IOF menor. Ou seja, usando a transferência mais o cartão, eu consigo economizar muito, se comparado ao uso do cartão de crédito brasileiro no exterior.
Mesmo assim, mantenho dois cartões de bancos brasileiros para caso de emergência. Isso é importante, pois já tive problemas de dois dos cartões não funcionarem e ter de recorrer ao terceiro. Então, além de três cartões de três bancos diferentes, tenho duas bandeiras, Visa e Mastercard.
QCV – Você teve uma arritmia cardíaca lá em 2017 enquanto estava no Chile. Como faz para cuidar da saúde (alimentação, exercícios, check-ups) enquanto viaja?
Fernando – Como a maioria dos homens, infelizmente nunca tive muito cuidado preventivo com a saúde. Até 2017, quando, no auge do nomadismo, e logo quando resolvi não ter mais uma casa no Brasil, meu coração começou a reclamar. Eram diversas palpitações. O pior é que eu estava no Chile, em uma cidade bem pequena. Aguardei o retorno ao Brasil e corri para o hospital. De cara, após exames básicos, o médico já diagnosticou como ansiedade e stress. É, nomadismo não é brincadeira e te leva ao limite!
Depois de detectado e tratado, eu comecei a cuidar mais da saúde. Tenho feito alguns exames mais periodicamente, consultado dentista, nutricionista e tentado fazer exercícios sempre que possível. Tenho cuidado muito da alimentação, para tentar melhorar a imunidade e ficar menos doente, além de aumentar a resistência e evitar – ou reduzir – novos problemas com intoxicação no futuro.
Embora seja importante e muitas vezes obrigatório ter seguro saúde, tento evitar usá-lo prevenindo possíveis problemas com consultas ao médico quando passo pelo Brasil e equilíbrio da vida. Mesmo assim, uma das dificuldades que ainda tenho e pretendo corrigir nos próximos anos é fazer atividades físicas regularmente quando viajo. Isso certamente ajudará a evitar ainda mais problemas físicos e psicológicos.
É claro que existe vida além das intoxicações alimentares e da solidão de um quarto de hotel. Nosso entrevistado compartilha tudo que há de lindo nesse mundo na rede social mais pé na estrada que a gente conhece (sim, essa mesmo!). Segue o @nandokanarski para uma overdose de wanderlust e muitas pílulas de realidade – todas as fotos que ilustram a entrevista foram uma cortesia dele, que também é apaixonado por fotografia!
Pensando em aderir ao nomadismo? Descubra algumas das cidades mais baratas para viver ao redor do mundo!
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